19.9.11

Sombras


Minha mãe tinha um pequeno estojo de sombras. Ele era oval e as cores vinham separadas em formato de borboletaseram tons de azul e rosa. Azul-petróleo, azul-esverdeado, azul-turquesa, azul-claro, lilás e rosa-choque.

Eu abria a caixinha e ficava olhando as asas das borboletas cintilarem. Achava aquelas cores lindas, mas não sabia o que fazer com elas. Nem encostava o dedo no pó e, talvez por isso, a minha mãe não soubesse que eu mexia ali.

Na festa junina da escola, ela me maquiava.
O meu vestido também era azul, escuro, com bolinhas e babados brancos. Sombra azul, batom vermelho. Era o máximo!

...

Eu também queria pintar as unhas, mas não podia. Hoje vejo essas meninas de 3, 4 anos, com as unhas coloridas, não raro mais bem feitas que as minhas, e lembro. No salão, observava a manicure, mexia na caixinha e sempre elegia tons de vermelho ou roxo ou marrom para a minha mãe
ela, rapidamente, refutava as minhas escolhas.

Uma vez era Carnaval e só por isso ela deixou a manicure passar esmalte em mim. Eu tinha trazido de casa o vidrinho importado, com as letras em dourado, a única cor escura que minha mãe tinha: rosa-choque bem forte, quase vermelho.

Fiquei de unhas feitas o feriado e voltei para a escola assim. Uma menina, com inveja, veio falar que a mãe dela achava feio crianças de unhas pintadas. Eu disse que era por causa do Carnaval e não liguei. Mas na volta da escola, minha mãe me obrigou a tirar o esmalte antes que eu fosse para a aula de teclado.

...

Por mais que eu pouco usasse batom naquela época, nunca superei o sumiço de um batom vermelho, para crianças, que tinha cheirinho de morango. Era uma coleção de frutas: tinha o roxo, de uva, o vermelho, de morango, e o rosa, de tutti-frutti.

Eu emprestei o vermelho para a minha irmã levar em uma excursão em um sítio e ela perdeu, ou roubaram. Ainda sinto aquele cheiro de chiclete na memória... quase um babaloo de morango.

4.10.10

Pilhéria


Disseram que tinha que controlar meus pensamentos - e não o contrário.

Eu me sentia como um equilibrista de circo, trocando os malabares em cima da corda bamba.

Fui pensar no que estava fazendo, caíram todos, caí eu.

5.8.10

Escritura

Virá de uma só vez e me possuirá. Eu responderei submissa ao clamor de misteriosas vozes que se materializarão em letras.

O pensamento se encadeará sem abismos. Além dele, só escutarei a cadência do teclado despejando laudas.

Palavras jorrarão, páginas serão sucedidas, o texto brotará diante de meus olhos. Eu não vacilarei - não inverterei períodos, não reescreverei parágrafos, não terei sequer a necessidade de consultar o dicionário de sinônimos. Apenas cumprirei um relato.

23.6.10

Cá com meus botões

Sempre gostei de apertar botões. Deve ser por isso, não vejo vantagem na tecnologia touch screen, que engordura telas e me tira o estranho prazer de sentir o dedo afundando na tecla – como agora.

Quando era pequena, pedia para minha mãe me deixar discar o número dos telefones naqueles aparelhos antigos com disco, que giravam e faziam um barulho engraçado, tectectec, conforme a opção numérica. Também queria que meu pai me levantasse na altura do orelhão, para alcançar os botões e colocar a ficha. Nunca soube para que serviam * e # nos telefones, porque eles nunca eram solicitados nos números e quando eu os apertava, nada acontecia.

Gostava de apertar qualquer coisa: campainha, elevador, console de videogame, caixa eletrônico, até o botãozinho que zera a quilometragem do carro. Um dia, eu o pressionei sem desconfiar qual era a sua função. Depois da bronca que tomei do meu avô, entendi que apertar botões não se tratava de uma ação inconsequente.

Às vezes, minha mãe me levava para o trabalho e a melhor distração que eu podia ter, além de ficar carimbando folhas de papel e preenchendo meu nome em circulares escolares, era datilografar. Tenho paixão por máquinas de escrever desde então. Antes de descobrir aquele chorinho tocado pelo Altamiro Carrilho, o som delas já era música para mim.

Tudo bem que na época, recém-alfabetizada, eu não conseguia ir muito longe. Mas me encantava ver o meu pensamento tomando forma, depois que a tecla descolava da fita, marcando o papel. Eu, que estava me acostumando a segurar a caneta, via minhas ideias surgirem na folha em branco, com uma letra que não era a minha.

A brincadeira perdia um pouco a graça quando eu errava – a digitação ou a palavra – e não conseguia corrigir, nem batendo a tecla correta por cima, com mais força. Era difícil a vida sem o backspace. Em todo caso, rosqueava outra folha e recomeçava, até enjoar. Minha frustração foi nunca ter podido mexer nas máquinas de datilografar elétricas, sempre protegidas com uma capinha, desligadas, inacessíveis

Nessa fase, eu não sabia bem com o que gostaria de trabalhar (até hoje não sei), mas queria fazer algo que exigisse apertar muitos botões ao mesmo tempo. Eu confesso, pensava em ser caixa de supermercado, apenas para operar a máquina registradora, que não contava com leitores óticos de códigos de barras e era toda manual. Eu ficava vidrada na rapidez das moças ao registrar os produtos. As mãos dançando sobre o teclado, dedos que passavam uns entre os outros, sem que elas precisassem olhar para baixo.

Quando tive acesso aos primeiros computadores, quis ser secretária ou recepcionista. O que me interessava era fazer várias coisas ao mesmo tempo, atender ao telefone, teclar, conversar com os clientes. Como jornalista, às vezes me sinto uma secretária: pendurada na linha fazendo entrevistas, sentada diante do computador o dia todo, respondendo a pedidos de textos encomendados.

Quando o trabalho flui, é uma beleza. O problema é ficar olhando a tela em branco, com as mãos pousadas sobre o teclado e nenhum motivo para apertar um botãozinho sequer.


9.6.10

O que quer dizer diz

Quem "não tem palavras para dizer" alguma coisa é porque não tem nada a dizer. Quem quer dizer algo encontra palavras.

18.3.10

Coroa

Indefinição amarela. Humor ácido.
Da aspereza aparente - que é cenho franzido, insatisfações e olhares fulminantes - brotam espinhos e azedume.
A prova da polpa ouro é
frágil, é mel (são carinhos expostos, sorrisos enormes, vísceras).
Em pessoa, o próprio problema figurado na imagem: abacaxi.

15.1.10

Leitura imanente

Se debruçar sobre a palavra é como querer ver o fundo do rio do alto de uma canoa. Às vezes bate um raio de sol na água e a profundidade é revelada. No mais, o texto vem em enxurrada e deságua no óbvio.

25.10.09

Retruque

- Eeei você ainda escreve bem?
- Não, desaprendi a trabalhar com a intuição. Agora a palavra cabe n
eei, o espaço restrito daquilo que os outros esperam ler.