24.2.09

A repórter e a narradora

Linguagem, memória, ruínas: Relato de um certo Oriente, de Milton HatoumA primeira leitura que fiz de um romance de Milton Hatuom foi Dois Irmãos. Ainda na faculdade, meu argumento para a resenha crítica daquele texto baseava-se na idéia de que “a palavra era o caminho que permite ir de encontro à origem“.

Não foi surpresa, portanto, descobrir em sua obra inaugural, Relato de um certo Oriente, uma narradora que espreita a memória e dela tira seu sumo para compor a trama. Mas, com a cabeça já condicionada a funcionar com a chave ‘jornalista’ mode: ON para sempre, o problema da voz central de Relato me chamou a atenção, especialmente. Neste livro, a linguagem se mostra incapaz de recompor o passado e a narração é uma batalha perdida a priori.

O enredo apresenta a tentativa de condensação da vida de uma narradora que vagueia pelas histórias de sua família. Dentro do baú da memória o tempo está paralisado, mas em fragmentos. Ele ecoa diante da narradora na penumbra das reminiscências, depoimentos, diálogos solitários, perguntas sem resposta e suposições de cada capítulo. O conjunto atravessa as páginas e contempla o leitor, também desorientado. Sua reconstrução será o problema essencial da história.

O texto de Relato surge ainda em progresso e, por extensão, o leitor também participa da concatenação da trajetória que se deseja montar. Entretanto, a confusão de vozes e de silêncios não desestrutura a obra, pelo contrário – a forma literária trabalha no sentido de evidenciar o árduo processo que é articular um relato.

Tal tarefa me lembrou o trabalho do repórter, mediador da realidade, obrigado a encarar a insuficiência da linguagem toda vez que precisa materializar uma quantidade de fatos num todo, coerentemente organizado. Seu ponto de partida é a entrevista, o diálogo frágil, semelhante ao que a narradora trava com aquelas pessoas (“Conversar era roubar uma crença, violar o segredo do outro”).

Trata-se de uma voz que indaga em busca de evidências, pretende reconhecer a sua própria história na descrição alheia. Ao mesmo tempo, enfrenta a dificuldade de dar movimento a imagens fixadas, de articular argumentos na solidão das lembranças. A questão atinge o clímax no sexto capítulo, quando diversas passagens tematizam o problema da apreensão e transcrição.

A narradora parece tomar consciência do papel de observador/espectador que se reserva aos que buscam captar o mundo como matéria. Sua tentativa de dar sentido ao emaranhado de episódios desafia-lhe a superar ausências que consomem a memória. Ou seja, lidar com o vazio e a sobra, inerentes ao jogo de encaixes que forma qualquer texto.

Sabemos que a linguagem pode apenas aludir ao mundo, não recriá-lo. Na configuração literária de Relato, essa limitação é apresentada simbolicamente no silêncio (ou mistério) que envolve as personagens do romance, sendo a figura de Soraya Ângela, a criança muda, uma das que melhor indica a condição.

Em dado momento, o leitor percebe que muitos dramas permanecerão encobertos no desenrolar da história. Essas inconclusões sobrepostas colaboram para que compartilhemos a confusão e o desespero da narradora, até o ponto em que ela reconhece o malogro de sua intenção de trazer de volta o passado de maneira inteligível.

Escrever é inventar uma verdade: a realidade deixa de existir como tal quando passa à palavra. É por isso que o relato se revela impossível; não se completa, assim como o esperado encontro com Emilie. E essa, talvez, seja a única certeza que a narradora poderá alcançar com seu informe.

De certa forma, o insucesso se relaciona também com a função dos que pretendem – supostamente – retratar a realidade, como os jornalistas. Pois mesmo quem reúne fatos, deixa lacunas.

Relato de um certo Oriente traduz a angústia da insuficiência da observação da vida para sua transformação em texto. Argumento que também não basta para quem precisa escrever. Escritores ou jornalistas, somos regidos por uma confiança cega nas palavras, na esperança de que elas criem os caminhos que precisamos percorrer para chegar à verdade ou, ao menos, nos levem além, por um passeio nos bosques da ficção - que no caso não é bosque, mas floresta amazônica, como Dois irmãos, o segundo trabalho do autor, pode comprovar.


“Nessas zonas de silêncio, eu perdia o fio da meada e enfrentava dificuldades com a escrita, saltando frases inteiras e vituperando contras os vocábulos, como um leitor encurralado por signos indecifráveis. A descontinuidade da correspondência e a incompreensão de tantas frases me permitiam apenas tatear zonas opacas de um monólogo, ou nem isso: uma meia voz, uma escrita embaçada, que produzia um leitor hesitante.”

“ (...) queria descrevê-lo minuciosamente, mas descrever sempre falseia. Além disso, o invisível não pode ser transcrito e sim inventado. Era mais propício a uma imagem pictórica. Espátulas e tintas, massas de cores trabalhadas com movimentos bruscos e incisivos podiam captar algo que transparecia (...)”

“Naquela região as palavras proliferavam como uma explosão de fogos de artifício:reordenação de palavras, inversão e alteração de frases ou pedaços de frases, até o momento em que a mão estancou no ar e o lápis foi repousado sobre o mármore”. “ ‘Se algo inusitado acontecer por lá, disseque todos os dados, como faria um bom repórter, um estudante de anatomia, um Stubb, o dissecador de cetáceos.’ O teu presságio me deu trabalho. Gravei várias fitas, enchi de anotações uma dezena de cadernos, mas fui incapaz de ordenar coisa com coisa. Confesso que as tentativas foram inúmeras e todas exaustivas, mas ao final de cada passagem, de cada depoimento, tudo se embaralhava em desconexas constelações de episódios, rumores de todos os cantos, fatos medíocres, datas e dados em abundância. Quando conseguia organizar os episódios em desordem ou encadear vozes, então surgia uma lacuna onde habitavam o esquecimento e a hesitação: um espaço morto que minava a seqüência de idéias. E isso me alijava do ofício necessário e talvez imperativo que é o de ordenar o relato, para não deixá-lo suspenso, à deriva, modulado pelo acaso. Pensava (ao olhar para a imensidão do rio que traga a floresta) num navegante perdido em seus meandros, remando em busca de um afluente que o conduzisse ao leito maior, ou ao vislumbre de algum porto. Senti-me como esse remador, sempre em movimento, aguilhoado pela tenacidade de querer escapar: movimento que conduz a outras águias ainda mais confusas, correndo por rumos incertos. Quantas vezes recomecei a ordenação dos episódios, e quantas vezes me surpreendi ao esbarrar no mesmo início, ou no vaivém vertiginoso de capítulos entrelaçados, formados de páginas e páginas numeradas de forma caótica. Também me deparei com outro problema: como transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros? Tantas confidências de várias pessoas em tão poucos dias ressoavam como um coral de vozes dispersas. Restava então recorrer a minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes.”

Relato de um certo Oriente
Milton Hatoum
Companhia das Letras