20.10.08

Ilusões em alta

Minha recente imersão nos cadernos de Economia até que tem rendido boas surpresas. A primeira delas, claro, é verificar que termos como “swap”, “ações ordinárias” e “fundo hedge” não se traduzem apenas por interrogações.

Depois de anos rejeitando o noticiário financeiro, de repente me vi agarrada a essas páginas, na tentativa de entender a tal crise e administrar outras. Lia o jornal grifando parágrafos e com um dicionário de “economês” aberto. Acompanhava o desempenho da Bolsa, reparando menos nos índices, do que no limitado vocabulário usado para descrevê-los (derrete - despenca - desaba - cai - oscila - sobe - salta - avança - dispara).

Assim, já compreendia um pouco da lógica dos mercados, se é que eles têm alguma, que não seja a busca incessante dos lucros. A gradual familiarização com os temas me impressionava e divertia, como quando descobri a existência do “circuit breaker” :
– Então eles param de brincar, se não estão ganhando o jogo?

Quando deixei em casa o caderno de Cultura e levei o de Economia, percebi que tinha tomado gosto pelo assunto. E foi graças a isso que encontrei certo domingo, nas páginas de Economia & Negócios do Estadão, um texto do escritor peruano Mario Vargas Llosa sobre a turbulência global.

Em Capitalismo fora dos trilhos,
Llosa traz a literatura para o debate econômico e atenta para o caráter ficcional assumido pelos mercados nos últimos anos. Segundo ele, a economia dos países ocidentais teria perdido o vínculo com a realidade, uma vez que bancos, imobiliárias, financeiras, seguradoras e credores alimentaram um ciclo de mentiras para que o sistema funcionasse.

O caos financeiro se perpetuou pela falta de confiança. Diante de taxas, transações e devedores ilusórios, o investidor se retraiu, sem saber como é mais seguro movimentar suas ações. Dar crédito é enxergar veracidade no outro, crer que ele será capaz de honrar seus compromissos, e tudo o que temos agora é a ausência de garantias.
O travamento do crédito foi, portanto, prático e literal.

Me deliciei com as palavras de Llosa, porque sempre achei todos os pregões um auto-engano. A começar pelo fato de negociarem com quantias de dinheiro impalpáveis, que não existiriam, caso fosse necessário colocá-las diante dos olhos. Além disso, me incomoda saber que são esses números irreais que determinam a vida neste planeta.

O argumento do artigo me remeteu a outro ensaio do mesmo autor, no livro A verdade das mentiras. Ali, ele considera se o que se escreve em literatura é verdade ou não e explica que os romances mentem, mas dessa forma expressam verdades que não seriam acessíveis de outra maneira.

Na literatura, irrealidade e mentira são veículos para um conhecimento profundo, que permaneceria recôndito na racionalidade cotidiana. Ao construir universos imaginários, os textos literários refazem a realidade (assunto não para um post, mas sim para outro TCC, quem sabe uma tese de mestrado).

Entretanto, o próprio escritor conclui no Estadão: “fora do romance e da arte, viver na ficção, seja na política ou na economia, é um suicídio”. Foi o que aconteceu nos EUA. É o que fazemos tantas vezes, em tempos de desancanto, quando sustentamos farsas que nos condenam a falências interiores.

A ficção literária é mais enriquecedora do que a praticada pelo bancos. Ela nos liberta, ordena artificialmente nosso mundo, proporciona um refúgio aos desejos e temores que a vida incita. “É uma arte de sociedades em que a fé experimenta alguma crise, em que faz falta crer em algo”, diz Llosa.


Para combater o desespero da alta do dólar e da queda da Bolsa, sugiro um investimento rentável: compre um livro. É assim com qualquer crise que se instala mim. Peço socorro à literatura e não arrisco, invisto no Caderno 2.

16.10.08

Trilha sonora

Acho que quando nos conhecemos, me entreguei à melodia e parei de perceber a letra das canções. De qualquer forma ela ecoava e eu podia ter lido a mensagem que se desenhava ao redor de nós. Agora, olhos e ouvidos bem apurados, entendo. Desde o começo foi Vinicius.

Em contraponto, suas palavras eram perguntas e lasseios; não me deixavam fugir. Atrás vinha seu corpo, me cercando, cada vez mais próximo, até que
tuas mãos foram minhas com calma. Um canto sussurrado me arrebatou. Ele falava de um homem traidor, que tem medo de sofrer e por isso não sabe amar. Mas era muito tarde para eu prestar atenção às frases. Deixei.

Outro instante, tivesse reparado na nossa trilha sonora, saberia que
quem diz muito que vai, não vai, e evitaria certas ilusões. Porém, essa parece ser a regravação da história de um amor que passa, mas que é infinito enquanto dura.

Como naquela noite vazia, quando minha
descrença em ti não foi bastante diante da voz do poeta, que sugeria que eu me entregasse. Depois, cansada dos meus descaminhos, confesso que morri de arrependimento. Só que você voltou e o que era errado se justificou por parecer verdadeiro.

Foi então que da minha infinita tristeza aconteceu você. Minha alegria balançava num sofrimento, envolvia-se da agonia que me obrigava a te pedir o fim da saudade. Você, carinhoso, atendia, até decidir não aparecer mais.

Passei a torcer para que você voltasse
depressa, mas era inútil fingir. Ah, insensatez, agora eu me machucava. As sensações se alternavam: mágoa demais para um coração e vontade de ver renascer nossa vida. Ao mesmo tempo, tentava adivinhar por onde andava você e quando nada mais acontecia, eu só te esperava para dizer adeus.

À espera do que não vem, eu pensei demais. Sofri e cansei de procurar as razões para que tudo tivesse terminado assim. Nem mais sabia quem era você e, no entanto, dependia de seus versos e de um antigo refrão. Eu escutava o silêncio.

Voltei àquelas músicas (elas não me abandonavam como você, que apenas surgia em alguns acordes). Daí Vinicius me revelou
ainda mais o quanto eu gostava de ti.

Doía. Era certo doer. A angústia comprovava, mesmo que eu quisesse, não conseguiria negar o que tinha sido tão bom.


Você e o poeta, não por acaso, me deixavam a mesma lição de vida. Ela se resumia à coragem de entregar-se intensamente, na certeza de que tudo seria o que tinha de ser.

Por sua causa, Vinicius me ensinou a aceitar a emoção inevitável e me impediu de odiar o amor.

Soneto de separação
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.


13.10.08

Cachorro em pêlo de carneiro

Prefiro os cafajestes. Sei o que eles querem e o que eu posso esperar. No dia seguinte, eles vão, eu fico. Não sobra qualquer precisão, tudo se consome nos instantes desperdiçados juntos.

A relação escorre. Sua razão de ser se basta no encontro de desejos esbaforidos. Horas depois, cada uma das partes sorri, agradece e se despede. Contente. Sem mais.

Gosto dos sinceros que terminam a noite dizendo: “não sou homem de namorinho". Arrancam desde a raiz a erva daninha da ilusão, impedem que ela se alastre, para não precisar derramar suor limpando o terreno.

Eles não ligam, não deixam mensagens, jamais são gentis. O que é perfeito, pois ninguém tem obrigação de nada, muito menos de ser uma boa pessoa.

Dispenso os covardes que não se assumem como os cachorros que são. Lembram da irmã em casa e, com receio, tentam “apenas” ser legais. Disfarçam ao desempenhar um papel adulto e aprontam molecagens. Ou agem cinicamente, comentam a alta do dólar e somem, evitando indelicadezas necessárias.

Quero corpos grandes e ocos. Pois nada do que eles disserem será capaz de me entusiasmar. O contato se manterá na superfície e depois de um bom banho estarei pronta para outra vez, imune a qualquer arrebatamento.