22.3.08

Jornalista, eu?

"Outro dia, de nôvo, inesperadamente como sempre, me deparei na cidade com Rosa, purpúreo e belo. Fiquei feliz o resto da semana.

Desta vez não filosofamos sôbre a vida e a morte e o subconsciente. Puxei conversa a propósito da colaboração semanal que Rosa iniciou em O Globo. Eu desejava saber, para meu gôverno, o que Rosa está sentindo diante dessa obrigação hebdomandária de um estirão de jornal assinado por êle. A reposta veio pronta: - Angústia. Concluí imediatamente: Rosa não é jornalista.

Explico-me. Para o jornalista, digo o jornalista de vocação, escrever não é obrigação: é necessidade. O jornalista quer escrever todos os dias, não pode deixar de escrever, se não escrever, morre entupido. Duas vêzes por semana apenas eu bato a máquina, à última hora, uma croniquinha pífia. Danado da vida. Não sou jornalista. Rosa nunca escreve senão caprichado. Por isso, mal entrega a sua colaboração da semana, começa a trabalhar na da semana seguinte. Ora, uma semana não dá para Rosa caprichar nas suas invenções verbais (há sempre invenções verbais em tudo o que Rosa escreve). Daí a angústia. Rosa confidenciou-me:

- Começo a escrever, um mundo de coisas, idéias, imagens, reminiscências, me acodem. Escrevo cinco, dez, quinze páginas. É preciso reduzir a três. Começo a cortar, começo a corrigir. Aí tomo gôsto. Nunca se acaba de corrigir. O meu desejo é então continuar a corrigir até o fim da minha vida. Mas há que entregar os originais. E no dia seguinte recomeçar coisa nova.

Eu sabia que era assim com Rosa. Sabia do que se passou com êle quando foi convidado a traduzir para Seleções um romance condensado. Era a história de um pássaro. Rosa mandou vir dos Estados Unidos o romance completo. Mandou vir também tratados de ornitologia. Fêz a tradução, reescreveu-a cinco vêzes. No fim saiu obra perfeita, coisa que não era no original. Mas Rosa gastou muito mais do que ganhou.

No caso de O Globo deve estar sucendo o mesmo. Escrever para jornal é como escrever na areia. Rosa não escreve na areia: Rosa grava na pedra. Para a eternidade. Assim, o que Rosa está fazendo em O Globo é, capítulo a capítulo, mais um livro, digno de ficar junto de Sagarana, Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas."

Bandeira
Seleta em prosa e verso
org. Emanuel de Moraes