19.5.09

Cativeiro

Uma idéia me sequestra
e não há resgate que baste
para me libertar
de minha imaginação.

Toda fuga é inútil,
o cativeiro não tem escape.
Tropeço em calabouços
tentando desviar minha atenção.

Que crime é esse,
sem mandante, sem alarde,
ameaça sufocada em imagens
em que a palavra puxa o gatilho?

Respirar em branco bastaria,
mas nem por um instante a tranca se abre.
O pensa
mento é um rapto,
sou refém por opção.

3.5.09

Usura da verdade

"Por que foi que aquela criatura não procedeu com franqueza? Devia ter-me chamado e dito: - 'Luís, vamos acabar com isto? Pensei que gostava de você, enganei-me, estou embeiçada por outro. Fica zangado comigo?’ E eu teria respondido: - ‘Não fico não, Marina. Você havia de casar contra a vontade? Seria um desastre. Adeus. Seja feliz’. Era o que eu teria dito. Sentiria despeito, mas nenhuma desgraça teria acontecido. Lembrar-me-ia de Marina com vaidade, até com orgulho: - ‘Sim senhor, gostei de uma mulher de caráter, mulher de cabelo na venta’. Não seria esta miséria, esta recordação de coisas mesquinhas.”

Angústia
Graciliano Ramos

1.5.09

Calaboca

Não faça versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidntes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo.
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro

são indiferentes.
Nem me revele teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície inata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


"Procura da poesia"

Antologia poética
Carlos Drummond de Andrade