5.8.08

Clara Clarice

A jornada pela literatura de Clarice Lispector é intimista e funciona em chave dupla, para a autora e para o leitor. Se Clarice parece conseguir respirar apenas por causa de sua escrita, divide esse sopro de vida quando coloca no papel suas angústias, corriqueiras a qualquer indivíduo com um dose a mais de sensibilidade e reflexão.

Seu trabalho passa por uma lógica transformadora, em que as inquietações pessoais tornam-se temas de interesse universal. A particularidade dos fatos narrados serve à construção de uma mensagem intensa e íntegra, que não se perde em confissões egoístas. O conteúdo é moldado com a ajuda de personagens literárias que deixam de ser a autora, ao mesmo tempo em que a apresentam nua, sincera no texto.

Em Para não esquecer, Clarice consegue evocar uma realidade profunda quando escreve sobre temas como Brasília, acontecimentos domésticos, a relação com a literatura. O que constrange diante do informalismo dos assuntos tratados é a quantidade de mistérios presentificados, como se um brilho secreto dos fatos do dia-a-dia se espalhasse em cada fragmento do livro.

Clarice se propõe a falar de banalidades que, entretanto, nada têm de simples, porém, não se trata de um esforço em desvelar o estado supremo das coisas. Esses indícios mágicos que sobram derivam do tipo de sentimento apresentado, da condição humana relatada.

Não é o objetivo primordial de sua escritura expor o inominável. A prosa de Clarice é fiada porque ela tem consciência da impossibilidade de alcançar a entrelinha, local em que reside o encantamento da literatura. Mas não há escolha diante da inevitável condição de alguém que existe para a escrita.

É percebendo essa fragilidade que me pego surpresa. Compartilho, admirada, (sabendo, é claro, o meu lugar) o embate entre a necessidade e a dificuldade de expressão, tensão constante para todo ser que se arrisca a escrever.

No final, Clarice consegue transpor barreiras. Tentativa atrás de tentativa, sem dar nome ao que não tem nome, mas tornando a experiência real por meio das palavras. O que respinga no leitor, perturba e acomoda. A clareza existe, a mensagem pulsa.




“E como se isso não bastasse, infelizmente não sei “redigir”, não consigo “relatar” uma idéia, não sei “vestir uma idéia com palavras”. O que vem à tona já vem com ou através de palavras, ou não existe. – Ao escrevê-lo, de novo a certeza só aparentemente paradoxal de que o que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras. É incômodo. Se eu pudesse escrever por intrmétido de desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de menino ou de passear pelo campo, jamais teria entrado pelo caminho das palavras. Faria o que tanta gente que não escrever faz e exatamente com a mesma alegria e o mesmo tormento de quem escrever, e com as mesmas profundas decepções inconsoláveis: não usaria palavras. O que pode vir a ser minha solução. Se for, bem-vinda.”

“Para passar de palavra a seu sentido, destrói-se em estilhaços”

“Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.”

“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, icnorporou-a. O que salva então é ler ‘distraidamente’.”

“Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber de que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforço de ‘memória’, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva.”

“Essa incapacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu, por instinto de... de quê? Procure um modo de falar que me leve mais depressa ao entendimento. Esse modo, esse ‘estilo’ (!), já foi chamado de várias coisas, mas não do que realmente e apenas é: uma procura humilde. Nunca tive um só problema de expressão, meu problema é muito mais grave: é o de concepção.”

“Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É nesse sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o sentimento (a transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de chegar); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever. Se tomo um ar hermético, é que não só o principal é não mentir o sentimento como porque tenho incapacidade de transpô-lo de um modo claro sem que o minta – mentir o pensamento seria tirar a única alegria de escrever. Assim, tantas vezes tomo um ar involuntariamente hermético, o que acho bem chato nos outros. Depois da coisa escrita, eu poderia friamente torná-la mais clara? Mas é que sou obstinada. E por outro lado, respeito uma certa clareza peculiar ao mistério natural, não substituível por clareza outra nenhuma. E também porque acredito que a coisa se esclarece sozinha com o tempo: assim como num copo dágua, uma vez depositado no fundo o que quer que seja, a água fica clara. Se jamais a água ficar limpa, pior para mim. Aceito o risco. Aceitei risco bem maior, como todo mundo que vive. E se aceito o risco não é por liberdade arbitrária ou inconsciência ou arrogância: a cada dia que acordo, por hábito até, aceito o risco. Sempre tive um profundo senso de aventura, e a palavra profundo está aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, a escrever.”

“Ah, meu Deusinho, me dá um substantivinho, pelo amor de Deus! Ah, não quer dar? então faz de conta que eu nada falei. Sei perder.”

Palavras são pedras duras e as sensações delicadíssimas, fugazes, extremas.”

“Nem tudo quer dizer alguma coisa (isso é tão importante como o oposto).”

“O processo de escrever é feito de erros – a maioria essenciais – de coragem e preguiça, desespero e esperança, de vegetativa atenção, de sentimento constante (não pensamento) que não conduz a nada, não conduz a nada, e de repente aquilo que se pensou que era “nada” era o próprio assustador contato com a tessitura de viver – e esse instante de reconhecimento, esse mergulhar anônimo na tessitura anônima, esse instante de reconhecimento (igual a uma revelação) precisa ser recebido com a maior inocência, com a inocência de que se é feito. O processo de escrever é difícil? Mas é como chamar de difícil o modo extremamente caprichoso e natural como uma flor é feita. (Mamãe, me disse o menino, o mar está lindo, verde e com azul, e com ondas! Está todo anaturezado! todo sem ninguém ter feito ele!) A impaciência enorme ao trabalhar (ficar de pé junto da planta para vê-la crescer e não se vê nada) não é em relação à coisa propriamente dita, mas à paciência monstruosa que se tem (a planta cresce de noite). Como se se dissesse: “não suporto um minuto mais ser tão paciente”, “a paciência do relojoeiro me enerva”, etc. O que impacienta mais é a pesada paciência vegetativa, boi servindo ao arado.”


Para não esquecer
Clarice Lispector

Rocco

Um comentário:

Anônimo disse...

Adoro, adoro Clarice! Ótimo post. :)