25.10.09

Retruque

- Eeei você ainda escreve bem?
- Não, desaprendi a trabalhar com a intuição. Agora a palavra cabe n
eei, o espaço restrito daquilo que os outros esperam ler.

14.9.09

Léxico

Aprender palavras é a algo mágico, mas depois dos seis anos não tem tanto brilho. Somamos uma expressão aqui com outra acolá, uma gíria ao jeito de falar de alguém que admiramos, aquele palavrão perfeito para o momento do tropeção e aí está o nosso curto léxico.

Há ocasiões em que palavras já conhecidas começam a fazer parte da nossa vida. Por exemplo: namorado. Não que eu nunca tivesse usado esse verbete antes, mas o pronome possessivo "meu" faz toda a diferença em seu sentido. Antes, era "namorado de" ou mera acepção à condição
de alguém, usado em textos ou para designar um indivíduo.

Mas quando a palavra se refere à você, tudo muda. Para começar, duvido alguém dizer essa expressão no início do namoro sem esboçar ao menos um sorriso. É estranho, quando não se tem o costume, se ouvir dizendo "meu namorado", porque não é apenas a enunciação que é nova em nosso vocabulário, mas toda a situação que ela implica.

E daí, quando você diz "namorado" e se refere ao seu parceiro, a simples pronúncia suscita uma série de lembranças e sensações, como o primeiro beijo de vocês, aqueles arrepios que não são de febre e começam na barriga e um calorzinho no peito, lá de onde bate a percussão da vida.

Então, chega a hora de apresentar a pessoa aos amigos.
Você enche a boca e diz: "Meu namorado". Para conhecidos, que você cruza na rua, faz questão de frisar: "meu namorado". Em outros momentos, o silêncio diz mais, como na hora de apresentar o pretendente aos pais, quando tudo aquilo é óbvio e um hora teria que acontecer - "é claro, ele é seu namorado", ecoam em silêncio.

A velha-nova expressão paira ao ser pronunciada
. Se é escrita, solidifica. A letra recupera o seu poder. Por alguns instantes, sentimos o sabor da palavra em sua materialização plena e, nesse caso, o gostinho faz lembrar um beijo.

6.7.09

Serviço

Não é por me gavar
mas eu não tenho esplendor.
Sou referente pra ferrugem
mais do que referente pra fulgor.
Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário.
O que presta não tem confirmação,
o que não presta, tem.
Não serei mais um pobre diabo que sofre de nobrezas.
Só as coisas rasteiras me celestam.
Eu tenho cacoete pra vadio.
As violetas me imensam.

Manoel de Barros
Livro sobre Nada

23.6.09

Benção

Deus me inventou pra desespero do diabo
Eu fiz do samba catedral do inferno
Louca, muito louca, endoidecida
Vou fazendo desta vida
Tudo aquilo que bem quero

"Catedral do Inferno"
Cartola e Hermínio Bello de Carvalho

19.5.09

Cativeiro

Uma idéia me sequestra
e não há resgate que baste
para me libertar
de minha imaginação.

Toda fuga é inútil,
o cativeiro não tem escape.
Tropeço em calabouços
tentando desviar minha atenção.

Que crime é esse,
sem mandante, sem alarde,
ameaça sufocada em imagens
em que a palavra puxa o gatilho?

Respirar em branco bastaria,
mas nem por um instante a tranca se abre.
O pensa
mento é um rapto,
sou refém por opção.

3.5.09

Usura da verdade

"Por que foi que aquela criatura não procedeu com franqueza? Devia ter-me chamado e dito: - 'Luís, vamos acabar com isto? Pensei que gostava de você, enganei-me, estou embeiçada por outro. Fica zangado comigo?’ E eu teria respondido: - ‘Não fico não, Marina. Você havia de casar contra a vontade? Seria um desastre. Adeus. Seja feliz’. Era o que eu teria dito. Sentiria despeito, mas nenhuma desgraça teria acontecido. Lembrar-me-ia de Marina com vaidade, até com orgulho: - ‘Sim senhor, gostei de uma mulher de caráter, mulher de cabelo na venta’. Não seria esta miséria, esta recordação de coisas mesquinhas.”

Angústia
Graciliano Ramos

1.5.09

Calaboca

Não faça versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidntes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo.
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro

são indiferentes.
Nem me revele teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície inata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


"Procura da poesia"

Antologia poética
Carlos Drummond de Andrade

26.4.09

It's written

Se não estiver, a gente escreve.

20.4.09

Deleite


Deleite, upload feito originalmente por kel_sch.

Caminar, caminar, para notar que o homem em cima do cavalo permanece parado. Quem diria, tanta vida em uma cidade que esqueceu de morrer.

A cor da bandeira não mente o azul do céu. Mas o calor daquela praça no porto não vinha do sol.

Depois, em uma praia ao leste, as mãos se abriram ao abraço, os segredos escaparam como areia entre os dedos. (Foram devidamente recolhidos em xícaras e lançados ao vento - que ele tudo leva de nossas almas por aqui; ele sabe arrancar de nós o que precisa ser aislado).

A música proibida ecoa, riéndose de mi. Porque a arte não se deixa limitar por nossos pequenos dramas, ela é maior e surpreendente. É uma carona que a vida nos dá para que continuemos até nosso destino.

Eta orgulho besta de quem tomou o ônibus certo no país errado! Quando tudo é mesmo uma viagem, até se pode entender os descaminhos.

É preciso partir, levar na bagagem apenas quem você acha que é. O resto está na memória, este mapa incerto que demarca o nosso lugar.

Olhar, de fora, o jornal do dia. E pra que saber as horas? A vida passa diante da janela de um café. Reverências à preguiça e aos pequenos prazeres.

Um sabor sobra na boca por bastante tempo, como após uma colherada de doce de leite...

2.4.09

Outros ares

A la deriva,
llevas el alma en el timón.
Vas por la vida,
solo escuchando al corazón.
Buscas un puerto,
buscas un cielo abierto
lejos del dolor...

Oh, oh, oh,
Raquel

Jorge Drexler


24.2.09

A repórter e a narradora

Linguagem, memória, ruínas: Relato de um certo Oriente, de Milton HatoumA primeira leitura que fiz de um romance de Milton Hatuom foi Dois Irmãos. Ainda na faculdade, meu argumento para a resenha crítica daquele texto baseava-se na idéia de que “a palavra era o caminho que permite ir de encontro à origem“.

Não foi surpresa, portanto, descobrir em sua obra inaugural, Relato de um certo Oriente, uma narradora que espreita a memória e dela tira seu sumo para compor a trama. Mas, com a cabeça já condicionada a funcionar com a chave ‘jornalista’ mode: ON para sempre, o problema da voz central de Relato me chamou a atenção, especialmente. Neste livro, a linguagem se mostra incapaz de recompor o passado e a narração é uma batalha perdida a priori.

O enredo apresenta a tentativa de condensação da vida de uma narradora que vagueia pelas histórias de sua família. Dentro do baú da memória o tempo está paralisado, mas em fragmentos. Ele ecoa diante da narradora na penumbra das reminiscências, depoimentos, diálogos solitários, perguntas sem resposta e suposições de cada capítulo. O conjunto atravessa as páginas e contempla o leitor, também desorientado. Sua reconstrução será o problema essencial da história.

O texto de Relato surge ainda em progresso e, por extensão, o leitor também participa da concatenação da trajetória que se deseja montar. Entretanto, a confusão de vozes e de silêncios não desestrutura a obra, pelo contrário – a forma literária trabalha no sentido de evidenciar o árduo processo que é articular um relato.

Tal tarefa me lembrou o trabalho do repórter, mediador da realidade, obrigado a encarar a insuficiência da linguagem toda vez que precisa materializar uma quantidade de fatos num todo, coerentemente organizado. Seu ponto de partida é a entrevista, o diálogo frágil, semelhante ao que a narradora trava com aquelas pessoas (“Conversar era roubar uma crença, violar o segredo do outro”).

Trata-se de uma voz que indaga em busca de evidências, pretende reconhecer a sua própria história na descrição alheia. Ao mesmo tempo, enfrenta a dificuldade de dar movimento a imagens fixadas, de articular argumentos na solidão das lembranças. A questão atinge o clímax no sexto capítulo, quando diversas passagens tematizam o problema da apreensão e transcrição.

A narradora parece tomar consciência do papel de observador/espectador que se reserva aos que buscam captar o mundo como matéria. Sua tentativa de dar sentido ao emaranhado de episódios desafia-lhe a superar ausências que consomem a memória. Ou seja, lidar com o vazio e a sobra, inerentes ao jogo de encaixes que forma qualquer texto.

Sabemos que a linguagem pode apenas aludir ao mundo, não recriá-lo. Na configuração literária de Relato, essa limitação é apresentada simbolicamente no silêncio (ou mistério) que envolve as personagens do romance, sendo a figura de Soraya Ângela, a criança muda, uma das que melhor indica a condição.

Em dado momento, o leitor percebe que muitos dramas permanecerão encobertos no desenrolar da história. Essas inconclusões sobrepostas colaboram para que compartilhemos a confusão e o desespero da narradora, até o ponto em que ela reconhece o malogro de sua intenção de trazer de volta o passado de maneira inteligível.

Escrever é inventar uma verdade: a realidade deixa de existir como tal quando passa à palavra. É por isso que o relato se revela impossível; não se completa, assim como o esperado encontro com Emilie. E essa, talvez, seja a única certeza que a narradora poderá alcançar com seu informe.

De certa forma, o insucesso se relaciona também com a função dos que pretendem – supostamente – retratar a realidade, como os jornalistas. Pois mesmo quem reúne fatos, deixa lacunas.

Relato de um certo Oriente traduz a angústia da insuficiência da observação da vida para sua transformação em texto. Argumento que também não basta para quem precisa escrever. Escritores ou jornalistas, somos regidos por uma confiança cega nas palavras, na esperança de que elas criem os caminhos que precisamos percorrer para chegar à verdade ou, ao menos, nos levem além, por um passeio nos bosques da ficção - que no caso não é bosque, mas floresta amazônica, como Dois irmãos, o segundo trabalho do autor, pode comprovar.


“Nessas zonas de silêncio, eu perdia o fio da meada e enfrentava dificuldades com a escrita, saltando frases inteiras e vituperando contras os vocábulos, como um leitor encurralado por signos indecifráveis. A descontinuidade da correspondência e a incompreensão de tantas frases me permitiam apenas tatear zonas opacas de um monólogo, ou nem isso: uma meia voz, uma escrita embaçada, que produzia um leitor hesitante.”

“ (...) queria descrevê-lo minuciosamente, mas descrever sempre falseia. Além disso, o invisível não pode ser transcrito e sim inventado. Era mais propício a uma imagem pictórica. Espátulas e tintas, massas de cores trabalhadas com movimentos bruscos e incisivos podiam captar algo que transparecia (...)”

“Naquela região as palavras proliferavam como uma explosão de fogos de artifício:reordenação de palavras, inversão e alteração de frases ou pedaços de frases, até o momento em que a mão estancou no ar e o lápis foi repousado sobre o mármore”. “ ‘Se algo inusitado acontecer por lá, disseque todos os dados, como faria um bom repórter, um estudante de anatomia, um Stubb, o dissecador de cetáceos.’ O teu presságio me deu trabalho. Gravei várias fitas, enchi de anotações uma dezena de cadernos, mas fui incapaz de ordenar coisa com coisa. Confesso que as tentativas foram inúmeras e todas exaustivas, mas ao final de cada passagem, de cada depoimento, tudo se embaralhava em desconexas constelações de episódios, rumores de todos os cantos, fatos medíocres, datas e dados em abundância. Quando conseguia organizar os episódios em desordem ou encadear vozes, então surgia uma lacuna onde habitavam o esquecimento e a hesitação: um espaço morto que minava a seqüência de idéias. E isso me alijava do ofício necessário e talvez imperativo que é o de ordenar o relato, para não deixá-lo suspenso, à deriva, modulado pelo acaso. Pensava (ao olhar para a imensidão do rio que traga a floresta) num navegante perdido em seus meandros, remando em busca de um afluente que o conduzisse ao leito maior, ou ao vislumbre de algum porto. Senti-me como esse remador, sempre em movimento, aguilhoado pela tenacidade de querer escapar: movimento que conduz a outras águias ainda mais confusas, correndo por rumos incertos. Quantas vezes recomecei a ordenação dos episódios, e quantas vezes me surpreendi ao esbarrar no mesmo início, ou no vaivém vertiginoso de capítulos entrelaçados, formados de páginas e páginas numeradas de forma caótica. Também me deparei com outro problema: como transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros? Tantas confidências de várias pessoas em tão poucos dias ressoavam como um coral de vozes dispersas. Restava então recorrer a minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes.”

Relato de um certo Oriente
Milton Hatoum
Companhia das Letras

11.1.09

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Canso, canso
Do que eu traço

Publico, edito ou amasso?
Recomeço.